Tinha dado tudo errado.
Nada, absolutamente nada, havia acontecido como planejei a vida toda.
Desisti de tudo. Desisti até mesmo de dar um fim a essa vida de merda.
Fugi para Singapura. Duvidava muito que soubessem que eu estava vivo, muito menos que suspeitassem que eu havia levado todo o dinheiro comigo.
Mas mesmo assim, achei melhor abandonar o Japão, de vez.
Apenas pensar nisso já me fazia sentir saudade.
E então, lá estava eu.
Num motelzinho barato em Singapura, do tipo que eu desprezava.
Nem passaria pela cabeça do “antigo Yuudai” dormir ali.
...
Acordei de repente, no meio da noite. Sem sono algum, estranhamente sentia-me totalmente desperto. Olhando para o pequeno relógio ao lado da cama, vi que eram três da manhã em ponto.
- Yuudai? – ouvi uma voz feminina me chamando gentilmente. Tão gentilmente, que nem me assustei ao ouvi-la.
Sentei-me rapidamente na cama, e a vi na minha frente. Ajoelhada no colchão, me estendia a mão.
Acho que fazia tanto tempo desde a última vez que havia ficado sozinho com uma mulher bonita, que não fazia ideia de como reagir.
- Você... O que... Quem é você?! – lembrei que estava sem camisa, e tentei me esconder, meio sem jeito (que deprimente, eu parecia ter voltado a ser um pré-adolescente virgem).
- Meu nome é Luna. – ela sorriu – Eu não sou deste planeta. Viajo pelo passado e futuro, pelas dimensões... E estou aqui para ajuda-lo.
Me lembrei na hora da história dos três fantasmas do Natal.
Tive vontade de fazer perguntas, mas na verdade não sabia bem o que falar.
Foi quando olhei para baixo, e vi a mim mesmo dormindo.
Agora sim eu estava assustado.
Luna conversou um pouco mais comigo, ainda no quarto. Me explicou que sabia quem eu era e tudo que tinha acontecido comigo (seria esse um modo mais sutil de falar “sei de tudo que você fez”?).
Me acalmei, após algum tempo.
Ela disse que eu não estava sonhando, e sim tendo uma experiência de projeção astral. Foi o modo mais fácil que ela encontrou de me mostrar o que queria.
“E o que você quer me mostrar?” perguntei.
“Sua família.” ela respondeu seriamente, pela primeira vez o sorriso tranquilo havia lhe abandonado.
Gelei.
Família?
Ela me levaria a um cemitério, então?
Ou...
Seria possível?!
“Você... está falando da minha irmã? E do meu filho?” já fazia tempo que eu não gostava de me lembrar deles.
A culpa que eu sentia por ter dado prioridade à vingança ao invés de ter ido logo atrás deles pesava muito sobre mim.
Ainda mais porque eu sabia como Louis devia estar sofrendo nas mãos da mãe, servindo apenas como um objeto manipulável para que ela alcançasse objetivos egoístas.
Mas afinal... Quem eu sou pra falar em objetivos egoístas?
Por mais que eu tivesse colocado na cabeça que faria aquilo para vingar a mim, minha irmã e meus pais, eu sentia que todos eles iriam preferir que eu apenas seguisse minha vida em frente.
“Sim.” – a voz de Luna me tirou dos pensamentos. – “Mas apenas se você quiser. Se você decidir agora que quer mudar de vida e encontra-los, eu lhe mostrarei onde moram.”.
Não havia muito sobre o que pensar.
Antes da visita de Luna, eu já havia desistido de tudo mesmo.
Eu não fazia mais ideia do que fazer da vida.
A expectativa de finalmente encontrar minha irmã e meu filho era... Surreal e assustadora.
Mas também, era a única coisa que acendia uma ponta de esperança em mim, era minha única chance de não cair no abismo infinito de uma vida sem significado algum.
“Eu quero. Por favor, me leve até eles.” respondi convicto.
E lá estava eu.
Em menos de um minuto fui de Singapura ao Brasil, onde Luna disse que minha irmã morava. Como essa viagem aconteceu nem eu mesmo saberia explicar... Será que é isso que chamam de teletransporte?
Me encantei por aquele bosque. Mesmo que fosse noite e tudo ao meu redor estivesse bem escuro, dava pra ver que era lindo.
E mágico!
Você sente a magia no ambiente... O próprio ar que se respira ali é diferente.
E seguindo uma trilha de terra, chegamos a uma pequena escada de pedras que levava à porta da casa. Vi que tinha dois andares, e como se lesse meus pensamentos (por sinal, àquela altura eu já estava quase certo de que ela de fato os lia), Luna disse:
- Tem dois andares. Mas está meio apertado pra todo mundo, mora bastante gente aí... Nana às vezes pensa em construir outra casa aqui perto, para Hell e Cain.
- Quem são esses?
Luna sorriu como se estivesse esperando por essa pergunta. E de fato, foi uma deixa para que ela me falasse sobre cada um dos moradores daquela casa.
E a minha noite se tornava cada vez mais surreal.
Minha irmãzinha era uma “fada-borboleta”? Fazia magia e viajava para outra dimensão de tempos em tempos? Morava com um demônio, uma vampira, uma fada viciada em vinho, dragões, uma menina-gata, e uma criança supostamente muda que ninguém sabia de fato explicar o que era??
No final da conversa (que eu e Luna tivemos sentados na escada de pedra, antes de entrarmos), eu estava me sentindo... Chapado.
Era como se tivesse me drogado, ou bebido muito.
Porque minha cabeça doía e eu me sentia zonzo com a enxurrada de informações complexas e fantásticas.
E tudo isso só havia me deixado tão perturbado, justamente porque eu estava acreditando.
Sim, eu mesmo me assustei com a facilidade com que acreditei nas informações.
Depois das devidas explicações sobre seres extraterrestres, interdimensionais, outros mundos, e várias outras coisas que seriam consideradas “loucura” pela maior parte das pessoas consideradas mentalmente sãs que existem, finalmente entramos na casa.
Não abrimos a porta. Estávamos atravessando materiais sólidos, como fantasmas.
A cada pessoa que encontrávamos, estivesse ela dormindo ou ainda acordada naquela madrugada, Luna me dizia quem era e me falava mais um pouco a respeito.
O casal Hell e Cain dormia na sala, num colchão que fora encaixado no chão de forma aparentemente provisória. Junto a eles estava a pequena Chihiro.
Havia um quarto com um beliche e outro colchão, lá encontrei a menina-gata Marie enroscada entre lençóis na cama de cima do beliche, de fato dormia feito um gatinho.
“Então essa é a minha nora?” perguntei sorrindo. A história deles havia me deixado muito feliz, era realmente como um conto de fadas. Ao menos o terrível azar no amor não era genético.
“É sua nora, sim. A cama de baixo costuma ser de Louis, mas hoje é Merlot quem está nela.” Luna explicou, e eu prestei mais atenção na menina que parecia uma princesinha cor-de-rosa.
“Seu filho talvez esteja na cama da tia dele. Vamos passar pela cozinha para chegar lá.” e eu continuei a acompanhando pela casa.
Na cozinha, vi uma mulher mexendo alguma coisa numa grande panela.
Ela usava um quimono floral, roxo, e seus gestos tinham a delicadeza de uma fada.
“É Nana, não é?” perguntei ansioso, e Luna acenou afirmativamente.
Um pouco hesitante, fui para frente dela, a fim de vê-la melhor.
Eu sabia que ela não podia me enxergar, mas mesmo assim fiquei com vergonha do meu estado nada apresentável.
Ela era tão parecida comigo. Mas numa versão feminina muito, muito melhorada, é claro.
A simpatia que senti foi imediata.
Tive muita vontade de chorar ao pensar em todos os anos que desperdicei em busca de vingança pelos nossos pais. Eu poderia tê-la encontrado muito antes, eu poderia ter visto Nana crescendo...
Como eu gostaria de ter sido um bom irmão mais velho!
Queria ter estado sempre ao lado dela, a ajudando em tudo. Ouvindo seus problemas femininos, os quais eu com certeza não saberia como ajudar; levando-a aos bailes e primeiros encontros, espancando cada otário que partisse seu coração...
Até hoje eu tinha jogado minha vida no lixo.
Eu já estava enxugando as lágrimas, depois de pensar em tantas coisas que gostaria de ter feito.
E Nana estava ali, mexendo na panela e ocasionalmente jogando nela algumas ervas. Seu jeito tranquilo parecia ser intencional, parecia estar me dizendo “Acalme-se, Yuudai. Agora poderemos ser irmãos, finalmente.”
De repente, entra em cena um cara ruivo com cara de sono, vestindo apenas uma cueca xadrez.
Ele se aproxima de Nana por trás e lhe dá um tapinha!
“Quem é o babaca? E porque bateu na bunda da minha irmã??!” perguntei à Luna, indignado.
Ela riu, e me disse que aquele era o tal do Luke, namorado de Nana.
...
Sério isso? (¬_¬)’
“Mas que... Mau gosto.” foi tudo que consegui dizer, olhando aquele projeto de marginalzinho de cima a baixo.
De fato, como eu queria ter visto Nana crescer!
Eu a teria mantido longe de elementos como esse aí.
“Não o julgue tanto pela primeira impressão...” Luna me aconselhou.
“Vamos sair daqui, vamos?” eu não ia conseguir continuar naquele ambiente, onde Nana havia acabado de me decepcionar pela péssima escolha de namorado.
Logo eu entrei no quarto que pertencia à Nana e ao ruivo da cueca xadrez.
Ali estava Louis, voltando do banheiro. Sonolento e com o cabelo loiro todo bagunçado.
Confesso que a vontade de voltar a chorar foi imediata.
Meu filho era lindo, e tinha olhos iguais aos meus.
“Posso... Posso abraça-lo?”
“Com certeza.” Luna respondeu.
Mas eu não conseguia tocá-lo.
Aquilo foi o mais próximo de um abraço que consegui dar à Louis.
“Hm... o frio passou.” Louis disse com a voz embargada, e esfregou os braços.
Me abaixei, ficando cara a cara com ele.
Eu não lembrava quando havia sido a última vez em que me senti tão feliz!
“Eu vou vir aqui, filho! Logo vou te abraçar de verdade!” não importava que ele não estivesse me ouvindo. Minhas palavras eram verdadeiras, eu visitaria essa casa o quanto antes.
“Vamos, Yuudai? Precisamos voltar.” Luna me chamou, quando percebeu que eu não tinha pressa nenhuma em me afastar de Louis.
“Sim, vamos...”
E saímos da casa.
Mas a noite ainda não havia acabado.
Quando estávamos na estrada de terra, indo em direção à saída do bosque, vimos alguém.
Um pouco mais a frente havia um homem que parecia estar treinando. Ele dava socos e chutes no ar, demonstrando grande habilidade.
Que tipo de pessoa treinava num bosque escuro às quatro da manhã?
E que tipo de pessoa fazia isso de blusa com mangas compridas, naquele verão carioca?
Ele parou um pouco, respirando fundo enquanto passava a mão no cabelo azul, tirando-o da frente dos olhos.
Permaneceu parado e em silêncio, como se estivesse percebendo alguma coisa.
E, num movimento rápido que me surpreendeu, virou a cabeça na minha direção.
Eu vi o brilho amarelo intenso dos olhos dele. Não eram olhos como os de Luke, pois me pareceram muito mais intensos e... Selvagens?
“Quem é... Esse?” perguntei à Luna, um pouco assustado. “Ele está nos vendo?”
“Esse é o dragão azul do qual te falei. É Kratos.” - ela prendeu o ar por um momento – “E... Ele não vai nos ver, se nos movermos rápido agora!” Luna me puxou pela mão, e corremos até a saída do bosque.
Sim, nós corremos!
Pode imaginar como meu coração quase saía pela boca?!
Ela me fez correr muito, e em seguida nos teletransportamos novamente para o quarto em Singapura.
Algumas horas mais tarde, eu acordei lembrando-me nitidamente daquele passeio noturno.
E agora eu tinha um objetivo.




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