Quando Cain voltou para casa,
a cena que encontrou na sala o surpreendeu.
Hell estava sentada no sofá, maternalmente acariciando os
cabelos de uma menina desacordada, que vestia um belíssimo vestido no estilo
vitoriano. Conversava com Luke e Kratos.
- Entendi... Então você gostaria que ele morasse aqui com
a gente? – Luke perguntou.
- Sim. É o que vou perguntar a ele, quando acordar.
- Quem vai morar com a gente? – Cain entrou na sala
enquanto perguntava.
- Ah, Cain! Venha aqui...! – Hell o chamou ansiosamente.
– Olhe, este aqui é Balthazar. Lembra? Eu já tinha te falado sobre ele... –
Cain não conseguia lembrar, a princípio.
- É um menino? – perguntou, rindo do modo sutil que lhe
era comum.
- Sim, acredite se puder. – ela riu também. – Não lembra?
- Não, desculpe... Quem é ele?
- Acho que só comentei sobre ele uma ou duas vezes... Eu
mesma nem o conhecia muito bem, apenas nos esbarramos no Mundo Inferior poucas
vezes antes que eu saísse de lá. Esse garoto é a segunda criação de Hades, ele
foi criado para ficar no meu lugar.
- E... O que faz aqui? – lembrou-se de alguma coisa que
Hell já havia lhe falado sobre essa história.
- Estão querendo que eu volte pra minha dimensão, pra ser
julgada por ter matado Sekhmet... Ou seja, não posso voltar de modo algum ou
serei morta. – ela mostrou a língua, como se não ligasse muito para o fato e
até o achasse engraçado.
- Como eu e Luke já ouvimos essa história, vamos sair da
sala pra vocês ficarem mais a vontade. Não deve demorar muito para que o garoto
acorde. – Kratos falou simpaticamente, e saiu dali seguido por Luke.
- Então... Suponho que ele tenha sido enviado aqui pra te
levar de volta, e tenha obviamente falhado? – sentou-se no sofá também, pondo
as pernas de Balthazar (ou “Spike”, como preferia ser chamado) em seu colo,
para que houvesse espaço.
- Exato. E por isso, vou perguntar se ele quer ficar aqui
com a gente. Não sei se ele vai aceitar logo de cara, acho que ele tem muita
raiva de mim...
- Por quê?
- Ah, ele ficou falando sobre como ele treinou a vida
toda para me derrotar, coisas do tipo. Deve estar com raiva de mim por eu ter
ganhado sem sequer ter encostado um dedo nele.
- Mas vejo que ele encostou em você, não é? – segurando
delicamente o queixo de Hell, tocou com o polegar no lábio inferior dela, que
estava ainda um pouco inchado.
- Sim, mas isso não foi nada demais. Eu tinha baixado a
guarda, pensando que ele estava quase desistindo...
Parou de falar, pois o garoto parecia estar
acordando.
Ele se mexeu, e abriu os olhos devagar.
- O-o que?! – disse assustado ao perceber que estava com
a cabeça no colo de Hell e as pernas apoiadas em Cain. Tentou se mover rápido
demais, ficando tonto, e apenas não caiu porque Cain lhe segurou.
- Calma... – o demônio pediu, com uma voz tão bonita que
era difícil de resistir.
Mas Spike não cairia nessa!
- Calma?! Porque você está me prendendo?!!
- Só estou te segurando para que não caia... Desculpe. –
largou-o de uma vez, e Spike caiu com tudo no chão.
- Seu idiota, a gente não quer te fazer mal. – Hell
revirou os olhos, impaciente.
Spike correu até a parede oposta e olhou ao redor, como
se procurasse por rotas de fuga.
- E-eu não... Vocês... – parecia tão nervoso que mal
conseguia formular frases.
- Spike, acalme-se. Você desmaiou após ter se esforçado
demais na nossa luta, e eu te trouxe para dentro da casa. Recomponha-se, pois
quero falar uma coisa importante contigo!
- N-não... – engoliu em seco- Você... Hell, você precisa
voltar comigo!
- Não, Spike! Não vou voltar pra lá nunca mais! Não vou
ser julgada coisa nenhuma, vão simplesmente me matar, ou me torturar até
cansarem e depois me deixar exposta como exemplo.
Ele sentiu os olhos arderem e o corpo ficar trêmulo.
- Mas... Mas se... Se eu voltar sem você, ele vai me
matar. Você sabe, Hades vai me matar...!
- Então, vamos por a situação de modo claro. Hell não
pode voltar com você, porque se fizer isso será morta. E você não pode voltar
sem ela, pois seria morto. – Cain disse.
- Ou seja... More aqui com a gente. – ela disse de um
vez, com um sorriso no rosto. Um sorriso que Spike ainda não conhecia, pois
nele não havia nenhuma maldade ou deboche.
Ele pensou, olhando para baixo.
Sentia-se um tanto perdido.
- E se... Vieram aqui e tentarem me matar...?
- Nós te protegemos. E não apenas eu e Cain, nós fazemos
parte de uma família grande que inclui também uma fada bem poderosa e dois
dragões estupidamente fortes. – ela piscou.
- Estão falando de... Nana, Luke e Kratos...? – ele
perguntou baixinho.
- Oh, você os conhece? – ela pergunta animada.
- Claro, vocês todos são muito famosos “lá fora”! Tanto
que alguns dizem até que são apenas lendas... Então eu nunca soube se existiam
mesmo...
- Então você aceita ficar aqui, com a gente? Quer entrar
para a família? – Hell perguntou numa voz carinhosa que chegou a assustar
Spike, que estava conhecendo de uma vez só um lado de Hell que ele nunca pensou
que fosse possível existir.
Ele abaixou um pouco a cabeça, tentando esconder o rosto
avermelhado cujas lágrimas começavam a rolar. Não conseguia falar nada, então
apenas fez sinal afirmativo com a cabeça.
Cain sentia-se feliz, e ao olhar para Hell, trocaram
sorrisos.
- Eu vou lá fora também. Acho que vocês precisam se
acertar... Qualquer coisa, me chama. – Cain disse baixinho para Hell, que
concordou.
Spike estava tão concentrado em não abrir os olhos e não
levantar a cabeça, que nem percebeu que Hell estava na sua frente. Apenas notou
mesmo a presença dela quando foi abraçado pela vampira.
- O-o que...? – foi tudo o que conseguiu falar.
- Spike... Imagino pelo que você tenha passado lá. Já foi
ruim para mim, mal posso imaginar como deve ter sido para você...
- Por que...? Só porque eu sou... Fraco? – perguntava
entre soluços.
- Não. Porque você é apenas um garotinho, e não deveria
passar por nada daquilo.
Spike agora chorava compulsivamente, por fim desistindo
de resistir ao abraço e se jogando de vez em Hell, abraçando-a apertado e
encontrando nesse ato um pouco da força que precisava.
- Hell...! Eu odeio aquele lugar! Eu odeio o Hades! Eu
odeio o planeta da onde a gente veio!
- Sim... Eu também. Pode dizer tudo, Spike... Desabafa o
que quiser.
- Eu... Eu não quero nunca mais voltar lá... Por favor,
Hell... Me proteja! – escondeu o rosto no ombro de
Hell, voltando a chorar mais
ainda.
Hell foi descendo o corpo até o chão, acompanhada por
ele, e ambos continuaram abraçados no chão. Hell sentava ali, enquanto Spike
jogava-se em seu colo.
Os grandes vestidos de ambos se confundiam, era pano para
todos os lados.
Mas nenhum deles se importava com os inevitáveis
amassados das roupas anteriormente impecáveis.
- É claro que eu vou te proteger, Balthazar. Fique comigo
e farei o possível para que nada de mal te aconteça. – ela disse por fim, e
beijou-lhe a testa após afastar alguns fios da franja castanha.
Depois de algum tempo, quando Hell percebeu que Spike
havia parado de soluçar, ela tentou melhorar o clima.
- Então... Porque você usa vestido, hein? – perguntou com
um sorriso.
- Ah... Isso é que... – sentiu o rosto todo ficar
vermelho. – Eu também não me importo em usar roupas normais, mas... Me sinto
melhor com vestidos assim... Me dão mais segurança, eu acho. – respondeu
timidamente.
- Por quê?
- Por que... Eu te via usando esses vestidos lá... E eu
sempre pensava em como queria ser que nem você... – a vergonha era tanta que
nem conseguia encará-la nos olhos.
Hell não disse nada, apenas sorriu.
Havia algo em Spike que despertava em Hell um lado dela
que ela mesma não conhecia. Tinha vontade de protegê-lo, de vê-lo feliz.
“Será que é assim que as irmãs mais velhas se sentem?”,
pensou, e riu internamente.
- Aqui você vai poder pegar uns vestidos bem legais
emprestados das outras meninas... E meus também. Garanto que elas não vão se
importar.
- Jura? - os olhos dele brilhavam.
- Sim, é claro. - “E se a Merlot não quiser emprestar, eu
suborno a monstrinha com vinho.” pensou.
- ...Obrigado, Hell. – ele disse por fim, voltando a
esconder o rosto no vestido preto dela.
- Eu que te agradeço, criança. E... Tire esse vestido,
vou lavá-lo. Desculpe pelo vinho, eu queria que você desistisse e fosse embora
logo.
- Ah... É... Será que vai ficar manchado? – ele já tinha
até esquecido da luta fracassada.
- Se ficar, a Nana com certeza tira. Ela é demais, você
tem que ver.
- Mal posso esperar pra conhecer todo mundo... – ele
sorriu, imaginando como ia ser, se iam gostar dele, se ele ia fazer amigos...
#
Hell o ajudou a tirar o vestido, as anáguas, e todas
aquelas peças complicadas que ele disse que sempre tinha dificuldade de por e
de tirar sozinho.
A vampira se assustou ao ver o corpo de Spike.
Os ossos do garoto eram bem visíveis, ele estava
demasiadamente magro. Tinha músculos um pouco definidos demais para a idade que
aparentava, com certeza devido aos incansáveis treinos físicos que fora
forçosamente submetido; mas os músculos não serviam para disfarçar a aparência
doente.
- Hell? Que foi? – perguntou ao perceber o modo como ela
o olhava.
Será que havia
feito algo errado?
- Você está desnutrido. – ela constatou, a voz carregada
de preocupação.
- Ah... Eles nunca me deram muito o que comer, sabe como
é. – riu sem graça, abaixando a cabeça.
- Comigo era diferente, sempre fui muito resistente e
podia passar bastante tempo sem sequer tomar água... Acho que tentaram repetir
as mesmas faltas de cuidados com você. Mas suas características são...
- As de qualquer ser humano normal, né? Eu realmente dei
errado... – sua tristeza era visível.
- Não diga isso, não tem nada de errado com você! Você é
perfeito, mas aqueles filhos da puta com merda na cabeça fizeram tudo errado
contigo, desde o início. – disse irritada.
Spike riu ao ouvir os palavrões, ele parecia ter tido
pouco contato com esse modo tão... “Casual” de falar.
- Mas deixa pra lá, eu estou acostumado a...
- Nada disso. – interrompeu-o. – Depois que tomar banho,
eu e Nana vamos fazer você comer muito! A gente vai te alimentar tão bem que
você vai ficar até gordinho, vai ter pneuzinhos pra gente apertar! – ela disse
rindo, beliscando a pele fina da barriga dele, fazendo com que ele risse também
e se contorcesse pelas cócegas.
- Ei... Tudo bem... Mas eu preciso... Entrar nos
vestidos! Não se esqueça disso... – ele tentava falar em meios os risos
provocados pelo ataque de cócegas de Hell.
#
A noite ia chegando, e com ela chegaram também todos os
moradores da casa.
Após terem sido feitas todas as devidas explicações e
apresentações, todos pareciam tentar fazer com que Spike se sentisse
confortável.
E estava dando certo, pois ele nunca havia se sentido tão
feliz na vida (o que era fácil de ver, pois o menino não parava de sorrir).
Ele usava roupas emprestadas de Louis, enquanto o vestido
continuava de molho.
- Bolinhos saindo do forno! – Luke comemorou, carregando
a bandeja até a mesa onde as crianças conversavam animadamente. No meio do
caminho recebeu uma bronca de Yuudai, por quase ter sujado de chocolate a
camisa cara do japonês. Mas como de costume, o ignorou.
- Spike! Vamos ver quem consegue comer mais! – Marie
sugeriu, já atacando os bolinhos mais próximos.
- Eu não aceitaria, se fosse você... Ninguém ganha da
Marie! – Louis o advertiu, embora gostasse de ver essas competições, ainda que
os resultados fossem óbvios.
-Ahn... Eu vou tentar! – ele aceitou, recebendo desejos
de boa sorte dos que estavam vendo a cena.
Do outro lado do cômodo, estavam os sofás e a televisão,
onde se encontravam reunidos Nana, Kratos e Hell.
- Eu achei muito legal mesmo essa sua iniciativa de
perguntar se o garoto queria ficar aqui. – Kratos comentou, satisfeito. Além de
gostar de crianças, ele tinha essa característica de querer ajudar seres que
lhe pareciam indefesos, e nisso se assemelhava muito ao próprio filho.
Será que fazia parte de certos dragões, isso de querer
sempre proteger os que estão ao redor?
- Ainda que não tenha me consultado antes. – Nana a
repreendeu, mantendo a voz doce.
- Ora, Nana! E queria que eu fizesse o que? Era a minha
única chance, o garoto ia acabar voltando sozinho e sendo assassinado lá, caso
eu não o convencesse a ficar.
A japonesa voltou sua atenção ao chá que bebia, enquanto
pensava nas palavras de Helleh.
- É. Você está certa. – concluiu com calma.
- Haha... Pra que se fazer de rigorosa, Nana? Sei que
você também tá adorando ter esse garoto por perto. – Kratos a provocou, e em
resposta recebeu um sorriso tímido da fada, que realmente não fazia questão de
disfarçar o quanto gostava de ver a casa cheia e alegre.
- Ela quase falou de novo! – a conversa dos três foi
interrompida por Cain, que chegou ali carregando Chihiro no colo. Exibia um
sorriso radiante (que fez com que o coração de Helleh parecesse ter falhado em
uma batida).
- Cain... Ela é muda. – Hell comentou com aparente
desinteresse. A verdade é que ela ficava triste ao ver Cain, dia após dia,
tentando fazer com que a menininha falasse alguma coisa. Pois nada disso tinha
resultado algum.
- E eu acho que ela não é... – ele disse, um pouco
cansado.
Cain usava uma longa trança no cabelo branco. Uma trança
que ia quase até seus pés descalços, e deixava que vários fios escapassem e
caíssem dos lados de seu rosto, contrastando fortemente com a sua pele.
Ele acomodou Chihiro melhor em seus braços, antes de
sentar-se num sofá.
Helleh sentou ao lado dele, pegando Chihiro no colo em
seguida.
Ficaram ali por um tempo, vendo a menina pegar no sono.
- Cain... Todos nós gostaríamos que ela falasse. Mas
precisamos encarar os fatos, não acha?
- Eu acho é que vocês deviam ter um pouco mais de fé! Eu
não sou o único que acha isso, sabia? Yuudai e Kratos estavam comigo no dia em
que ela quase emitiu algum som. – olhou ao redor, mas Kratos já havia se
afastado dali, seguido por Nana.
- Tudo bem, Cain. Eu espero que vocês estejam certos
então. – ela forçou um sorriso, e beijou o namorado.
...
- Uau... Marie, você é mesmo a campeã! – Spike se dava por
vencido. Já não aguentava comer mais nada, sentia como se seu estômago
estivesse prestes a explodir.
- Foi o que o Louis disse! Essa garota não tem fundo... É
assustador! – Merlot comentava, enquanto Louis e Marie lutavam pelo último
muffin.
- Mas... Marie, eu não comi nenhum! – Louis reclamou.
- Meooow! Me dá esse, vai? – ela mostrava seu olhar
pidão, que comoveria qualquer um.
- Em breve você vai estar no peso normal, querido. – Nana
disse ao aparecer do lado de Spike, e limpou com um guardanapo o chocolate que
estava ao redor da boca dele. Isso o deixou vermelho, ainda mais constrangido
do que já estava. Nunca havia sido tratado bem na vida, e agora de repente
tinha até mesmo uma moça linda e simpática limpando seu rosto, apenas porque se
importava com ele.
- O-o-obri... Obrigado! – gaguejou mais que o normal para
que conseguisse agradecer.
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