sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

53. Spike


Quando Cain voltou para casa, a cena que encontrou na sala o surpreendeu.
Hell estava sentada no sofá, maternalmente acariciando os cabelos de uma menina desacordada, que vestia um belíssimo vestido no estilo vitoriano. Conversava com Luke e Kratos.

- Entendi... Então você gostaria que ele morasse aqui com a gente? – Luke perguntou.

- Sim. É o que vou perguntar a ele, quando acordar.

- Quem vai morar com a gente? – Cain entrou na sala enquanto perguntava.

- Ah, Cain! Venha aqui...! – Hell o chamou ansiosamente. – Olhe, este aqui é Balthazar. Lembra? Eu já tinha te falado sobre ele... – Cain não conseguia lembrar, a princípio.

- É um menino? – perguntou, rindo do modo sutil que lhe era comum.

- Sim, acredite se puder. – ela riu também. – Não lembra?

- Não, desculpe... Quem é ele?

- Acho que só comentei sobre ele uma ou duas vezes... Eu mesma nem o conhecia muito bem, apenas nos esbarramos no Mundo Inferior poucas vezes antes que eu saísse de lá. Esse garoto é a segunda criação de Hades, ele foi criado para ficar no meu lugar.

- E... O que faz aqui? – lembrou-se de alguma coisa que Hell já havia lhe falado sobre essa história.

- Estão querendo que eu volte pra minha dimensão, pra ser julgada por ter matado Sekhmet... Ou seja, não posso voltar de modo algum ou serei morta. – ela mostrou a língua, como se não ligasse muito para o fato e até o achasse engraçado.

- Como eu e Luke já ouvimos essa história, vamos sair da sala pra vocês ficarem mais a vontade. Não deve demorar muito para que o garoto acorde. – Kratos falou simpaticamente, e saiu dali seguido por Luke.

- Então... Suponho que ele tenha sido enviado aqui pra te levar de volta, e tenha obviamente falhado? – sentou-se no sofá também, pondo as pernas de Balthazar (ou “Spike”, como preferia ser chamado) em seu colo, para que houvesse espaço.

- Exato. E por isso, vou perguntar se ele quer ficar aqui com a gente. Não sei se ele vai aceitar logo de cara, acho que ele tem muita raiva de mim...

- Por quê?

- Ah, ele ficou falando sobre como ele treinou a vida toda para me derrotar, coisas do tipo. Deve estar com raiva de mim por eu ter ganhado sem sequer ter encostado um dedo nele.

- Mas vejo que ele encostou em você, não é? – segurando delicamente o queixo de Hell, tocou com o polegar no lábio inferior dela, que estava ainda um pouco inchado.

- Sim, mas isso não foi nada demais. Eu tinha baixado a guarda, pensando que ele estava quase desistindo...

Parou de falar, pois o garoto parecia estar acordando. 
Ele se mexeu, e abriu os olhos devagar.

- O-o que?! – disse assustado ao perceber que estava com a cabeça no colo de Hell e as pernas apoiadas em Cain. Tentou se mover rápido demais, ficando tonto, e apenas não caiu porque Cain lhe segurou.

- Calma... – o demônio pediu, com uma voz tão bonita que era difícil de resistir.
Mas Spike não cairia nessa!

- Calma?! Porque você está me prendendo?!!

- Só estou te segurando para que não caia... Desculpe. – largou-o de uma vez, e Spike caiu com tudo no chão.

- Seu idiota, a gente não quer te fazer mal. – Hell revirou os olhos, impaciente.

Spike correu até a parede oposta e olhou ao redor, como se procurasse por rotas de fuga.

- E-eu não... Vocês... – parecia tão nervoso que mal conseguia formular frases.

- Spike, acalme-se. Você desmaiou após ter se esforçado demais na nossa luta, e eu te trouxe para dentro da casa. Recomponha-se, pois quero falar uma coisa importante contigo!

- N-não... – engoliu em seco- Você... Hell, você precisa voltar comigo!

- Não, Spike! Não vou voltar pra lá nunca mais! Não vou ser julgada coisa nenhuma, vão simplesmente me matar, ou me torturar até cansarem e depois me deixar exposta como exemplo.

Ele sentiu os olhos arderem e o corpo ficar trêmulo.

- Mas... Mas se... Se eu voltar sem você, ele vai me matar. Você sabe, Hades vai me matar...!

- Então, vamos por a situação de modo claro. Hell não pode voltar com você, porque se fizer isso será morta. E você não pode voltar sem ela, pois seria morto. – Cain disse.

- Ou seja... More aqui com a gente. – ela disse de um vez, com um sorriso no rosto. Um sorriso que Spike ainda não conhecia, pois nele não havia nenhuma maldade ou deboche.

Ele pensou, olhando para baixo.
Sentia-se um tanto perdido.

- E se... Vieram aqui e tentarem me matar...?

- Nós te protegemos. E não apenas eu e Cain, nós fazemos parte de uma família grande que inclui também uma fada bem poderosa e dois dragões estupidamente fortes. – ela piscou.

- Estão falando de... Nana, Luke e Kratos...? – ele perguntou baixinho.

- Oh, você os conhece? – ela pergunta animada.

- Claro, vocês todos são muito famosos “lá fora”! Tanto que alguns dizem até que são apenas lendas... Então eu nunca soube se existiam mesmo...
- Então você aceita ficar aqui, com a gente? Quer entrar para a família? – Hell perguntou numa voz carinhosa que chegou a assustar Spike, que estava conhecendo de uma vez só um lado de Hell que ele nunca pensou que fosse possível existir.

Ele abaixou um pouco a cabeça, tentando esconder o rosto avermelhado cujas lágrimas começavam a rolar. Não conseguia falar nada, então apenas fez sinal afirmativo com a cabeça.

Cain sentia-se feliz, e ao olhar para Hell, trocaram sorrisos.

- Eu vou lá fora também. Acho que vocês precisam se acertar... Qualquer coisa, me chama. – Cain disse baixinho para Hell, que concordou.

Spike estava tão concentrado em não abrir os olhos e não levantar a cabeça, que nem percebeu que Hell estava na sua frente. Apenas notou mesmo a presença dela quando foi abraçado pela vampira.

- O-o que...? – foi tudo o que conseguiu falar.

- Spike... Imagino pelo que você tenha passado lá. Já foi ruim para mim, mal posso imaginar como deve ter sido para você...

- Por que...? Só porque eu sou... Fraco? – perguntava entre soluços.

- Não. Porque você é apenas um garotinho, e não deveria passar por nada daquilo.

Spike agora chorava compulsivamente, por fim desistindo de resistir ao abraço e se jogando de vez em Hell, abraçando-a apertado e encontrando nesse ato um pouco da força que precisava.

- Hell...! Eu odeio aquele lugar! Eu odeio o Hades! Eu odeio o planeta da onde a gente veio!

- Sim... Eu também. Pode dizer tudo, Spike... Desabafa o que quiser.

- Eu... Eu não quero nunca mais voltar lá... Por favor, Hell... Me proteja! – escondeu o rosto no ombro de 
Hell, voltando a chorar mais ainda.



Hell foi descendo o corpo até o chão, acompanhada por ele, e ambos continuaram abraçados no chão. Hell sentava ali, enquanto Spike jogava-se em seu colo.
Os grandes vestidos de ambos se confundiam, era pano para todos os lados.
Mas nenhum deles se importava com os inevitáveis amassados das roupas anteriormente impecáveis.

- É claro que eu vou te proteger, Balthazar. Fique comigo e farei o possível para que nada de mal te aconteça. – ela disse por fim, e beijou-lhe a testa após afastar alguns fios da franja castanha.

Depois de algum tempo, quando Hell percebeu que Spike havia parado de soluçar, ela tentou melhorar o clima.

- Então... Porque você usa vestido, hein? – perguntou com um sorriso.

- Ah... Isso é que... – sentiu o rosto todo ficar vermelho. – Eu também não me importo em usar roupas normais, mas... Me sinto melhor com vestidos assim... Me dão mais segurança, eu acho. – respondeu timidamente.

- Por quê?

- Por que... Eu te via usando esses vestidos lá... E eu sempre pensava em como queria ser que nem você... – a vergonha era tanta que nem conseguia encará-la nos olhos.

Hell não disse nada, apenas sorriu.
Havia algo em Spike que despertava em Hell um lado dela que ela mesma não conhecia. Tinha vontade de protegê-lo, de vê-lo feliz.
“Será que é assim que as irmãs mais velhas se sentem?”, pensou, e riu internamente.

- Aqui você vai poder pegar uns vestidos bem legais emprestados das outras meninas... E meus também. Garanto que elas não vão se importar.

- Jura? - os olhos dele brilhavam.

- Sim, é claro. - “E se a Merlot não quiser emprestar, eu suborno a monstrinha com vinho.” pensou.

- ...Obrigado, Hell. – ele disse por fim, voltando a esconder o rosto no vestido preto dela.

- Eu que te agradeço, criança. E... Tire esse vestido, vou lavá-lo. Desculpe pelo vinho, eu queria que você desistisse e fosse embora logo.

- Ah... É... Será que vai ficar manchado? – ele já tinha até esquecido da luta fracassada.

- Se ficar, a Nana com certeza tira. Ela é demais, você tem que ver.

- Mal posso esperar pra conhecer todo mundo... – ele sorriu, imaginando como ia ser, se iam gostar dele, se ele ia fazer amigos...

#

Hell o ajudou a tirar o vestido, as anáguas, e todas aquelas peças complicadas que ele disse que sempre tinha dificuldade de por e de tirar sozinho.

A vampira se assustou ao ver o corpo de Spike.
Os ossos do garoto eram bem visíveis, ele estava demasiadamente magro. Tinha músculos um pouco definidos demais para a idade que aparentava, com certeza devido aos incansáveis treinos físicos que fora forçosamente submetido; mas os músculos não serviam para disfarçar a aparência doente.

- Hell? Que foi? – perguntou ao perceber o modo como ela o olhava.
 Será que havia feito algo errado?

- Você está desnutrido. – ela constatou, a voz carregada de preocupação.

- Ah... Eles nunca me deram muito o que comer, sabe como é. – riu sem graça, abaixando a cabeça.

- Comigo era diferente, sempre fui muito resistente e podia passar bastante tempo sem sequer tomar água... Acho que tentaram repetir as mesmas faltas de cuidados com você. Mas suas características são...

- As de qualquer ser humano normal, né? Eu realmente dei errado... – sua tristeza era visível.

- Não diga isso, não tem nada de errado com você! Você é perfeito, mas aqueles filhos da puta com merda na cabeça fizeram tudo errado contigo, desde o início. – disse irritada.

Spike riu ao ouvir os palavrões, ele parecia ter tido pouco contato com esse modo tão... “Casual” de falar.

- Mas deixa pra lá, eu estou acostumado a...

- Nada disso. – interrompeu-o. – Depois que tomar banho, eu e Nana vamos fazer você comer muito! A gente vai te alimentar tão bem que você vai ficar até gordinho, vai ter pneuzinhos pra gente apertar! – ela disse rindo, beliscando a pele fina da barriga dele, fazendo com que ele risse também e se contorcesse pelas cócegas.

- Ei... Tudo bem... Mas eu preciso... Entrar nos vestidos! Não se esqueça disso... – ele tentava falar em meios os risos provocados pelo ataque de cócegas de Hell.

#

A noite ia chegando, e com ela chegaram também todos os moradores da casa.
Após terem sido feitas todas as devidas explicações e apresentações, todos pareciam tentar fazer com que Spike se sentisse confortável.
E estava dando certo, pois ele nunca havia se sentido tão feliz na vida (o que era fácil de ver, pois o menino não parava de sorrir).
Ele usava roupas emprestadas de Louis, enquanto o vestido continuava de molho.

- Bolinhos saindo do forno! – Luke comemorou, carregando a bandeja até a mesa onde as crianças conversavam animadamente. No meio do caminho recebeu uma bronca de Yuudai, por quase ter sujado de chocolate a camisa cara do japonês. Mas como de costume, o ignorou.

- Spike! Vamos ver quem consegue comer mais! – Marie sugeriu, já atacando os bolinhos mais próximos.

- Eu não aceitaria, se fosse você... Ninguém ganha da Marie! – Louis o advertiu, embora gostasse de ver essas competições, ainda que os resultados fossem óbvios.

-Ahn... Eu vou tentar! – ele aceitou, recebendo desejos de boa sorte dos que estavam vendo a cena.

Do outro lado do cômodo, estavam os sofás e a televisão, onde se encontravam reunidos Nana, Kratos e Hell.

- Eu achei muito legal mesmo essa sua iniciativa de perguntar se o garoto queria ficar aqui. – Kratos comentou, satisfeito. Além de gostar de crianças, ele tinha essa característica de querer ajudar seres que lhe pareciam indefesos, e nisso se assemelhava muito ao próprio filho.
Será que fazia parte de certos dragões, isso de querer sempre proteger os que estão ao redor?

- Ainda que não tenha me consultado antes. – Nana a repreendeu, mantendo a voz doce.

- Ora, Nana! E queria que eu fizesse o que? Era a minha única chance, o garoto ia acabar voltando sozinho e sendo assassinado lá, caso eu não o convencesse a ficar.

A japonesa voltou sua atenção ao chá que bebia, enquanto pensava nas palavras de Helleh.

- É. Você está certa. – concluiu com calma.

- Haha... Pra que se fazer de rigorosa, Nana? Sei que você também tá adorando ter esse garoto por perto. – Kratos a provocou, e em resposta recebeu um sorriso tímido da fada, que realmente não fazia questão de disfarçar o quanto gostava de ver a casa cheia e alegre.

- Ela quase falou de novo! – a conversa dos três foi interrompida por Cain, que chegou ali carregando Chihiro no colo. Exibia um sorriso radiante (que fez com que o coração de Helleh parecesse ter falhado em uma batida).

- Cain... Ela é muda. – Hell comentou com aparente desinteresse. A verdade é que ela ficava triste ao ver Cain, dia após dia, tentando fazer com que a menininha falasse alguma coisa. Pois nada disso tinha resultado algum.

- E eu acho que ela não é... – ele disse, um pouco cansado.

Cain usava uma longa trança no cabelo branco. Uma trança que ia quase até seus pés descalços, e deixava que vários fios escapassem e caíssem dos lados de seu rosto, contrastando fortemente com a sua pele.
Ele acomodou Chihiro melhor em seus braços, antes de sentar-se num sofá.

Helleh sentou ao lado dele, pegando Chihiro no colo em seguida.
Ficaram ali por um tempo, vendo a menina pegar no sono.

- Cain... Todos nós gostaríamos que ela falasse. Mas precisamos encarar os fatos, não acha?

- Eu acho é que vocês deviam ter um pouco mais de fé! Eu não sou o único que acha isso, sabia? Yuudai e Kratos estavam comigo no dia em que ela quase emitiu algum som. – olhou ao redor, mas Kratos já havia se afastado dali, seguido por Nana.

- Tudo bem, Cain. Eu espero que vocês estejam certos então. – ela forçou um sorriso, e beijou o namorado. 

...

- Uau... Marie, você é mesmo a campeã! – Spike se dava por vencido. Já não aguentava comer mais nada, sentia como se seu estômago estivesse prestes a explodir.

- Foi o que o Louis disse! Essa garota não tem fundo... É assustador! – Merlot comentava, enquanto Louis e Marie lutavam pelo último muffin.

- Mas... Marie, eu não comi nenhum! – Louis reclamou.

- Meooow! Me dá esse, vai? – ela mostrava seu olhar pidão, que comoveria qualquer um.

- Em breve você vai estar no peso normal, querido. – Nana disse ao aparecer do lado de Spike, e limpou com um guardanapo o chocolate que estava ao redor da boca dele. Isso o deixou vermelho, ainda mais constrangido do que já estava. Nunca havia sido tratado bem na vida, e agora de repente tinha até mesmo uma moça linda e simpática limpando seu rosto, apenas porque se importava com ele.

- O-o-obri... Obrigado! – gaguejou mais que o normal para que conseguisse agradecer.

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